Reportagem assinada pelos jornalistas Alessandra Duarte, Carolina Benevides e Efrém Ribeiro e publicada neste domingo (25/09) no jornal O Globo, informa que, enquanto o Brasil soluciona todos os anos, em média, de 5% a 10% dos homicídios, os Estados Unidos resolvem 65% dos casos; a França, 80%; e a Inglaterra chega a uma taxa de solução de homicídios de 90%.
Um dos motivos para isso é a perícia — que aqui trabalha com um déficit de pessoal estimado em 30 mil peritos, segundo a Associação Brasileira de Criminalística (ABC), representante dos peritos das polícias estaduais.
Além disso, o País não conta com lei federal que regulamente o modelo ou estrutura mínima para perícia nos estados. E mais: a falta de equipamentos leva a situações como o perito deixar de fazer fotos do local do crime ou tirar um raio-X para achar um projétil em um corpo; e a situação fica pior ainda por conta da não preservação do local do crime pela polícia até a chegada do perito.
Segundo a Associação Brasileira de Criminalística, o Brasil tem hoje cerca de 6,5 mil peritos nas polícias estaduais, déficit explicado, em boa medida, pela falta de concursos.
Estudo da associação com base em recomendação das Nações Unidas mostra que o Brasil precisaria ter, segundo sua população, 38 mil peritos, pois a recomendação é um mínimo de um perito para cada cinco mil habitantes. Seria necessário quintuplicar o número de peritos no País.
“Há estados em situação falimentar. Alagoas, o estado mais violento (pelo Mapa da Violência do governo federal), tem 34 peritos. No Piauí, o pior quadro, são 21 peritos para o estado inteiro. Você acha que, no sertão, por exemplo, mandam para perícia o corpo de toda vítima de assassinato? Nem solicitam, porque sabem que não vai ter quem faça, a não ser que seja familiar de alguém importante. Às vezes, mandam o corpo ser analisado por um médico da prefeitura, que não é legista e não sabe como procurar provas num cadáver”, afirma o presidente da ABC, Iremar Paulino.
Apesar desse quadro, casos com repercussão nacional como o assassinato da juíza Patricia Acioli, no Rio, têm trabalho pericial exemplar. No caso dela, foram periciados o local, o carro onde ela estava e o corpo. E analisados dados de mais de três milhões de celulares. Foi a partir desses dados que a polícia provou o envolvimento de três policiais militares e o planejamento do crime.
“Quando a máquina se esforça para funcionar, aparecem as respostas. Mas o crime envolvendo a juíza não foi tratado como mais um. O problema é fazer a máquina funcionar independente do CPF”, diz Erlon Reis, da diretoria da Associação de Peritos do Rio.
“Quando vi na TV a solução para o caso da juíza, pensei: e a minha sobrinha? (A perícia) Devia funcionar para todo mundo, né? Minha família acabou, nada foi feito, ela tinha 10 anos”, conta Carlos Roberto Afonso de Almeida, de 49 anos, tio de Jéssica Prisciliane Afonso Guimarães.
A menina foi vítima de bala perdida na Cidade de Deus, Rio, onde morava. Jéssica levou um tiro no pescoço em 14 de dezembro de 2006. Chegou a ser removida para o hospital e morreu no dia seguinte. A família nunca soube de onde saiu o tiro, e no inquérito muitas vezes Jéssica aparece como Jenice.
“A polícia não investigou nada. Nunca teve perícia no local. Queríamos entender o que houve, mas enterramos a menina e entregamos para Deus”, conta Carlos.
O caso de Jéssica é um dos exemplos de falhas e mesmo inexistência de perícias em inquéritos de homicídios encontrados pelo O Globo no Tribunal de Justiça do Rio. Um dos principais motivos para a situação de negligência da perícia é o déficit de pessoal.
Segundo a ABC, o Estado do Rio tem previsão de 535 vagas para peritos criminais; considerando o mínimo de um perito a cada cinco mil habitantes, o estado precisaria de três mil. Alagoas e Piauí, em pior situação, precisariam ter, cada um, 600, até 30 vezes mais do que o quadro atual.
Com 346 peritos, a Bahia precisaria de 2,8 mil. Somado ao déficit, está a má distribuição dos peritos que existem. Em boa parte dos casos, estão concentrados nas capitais.
“A falta de rede integrada faz com que alguns estados tenham melhores resultados, mas nem isso é garantia de qualidade. Minas, por exemplo, tem boa estrutura para DNA forense. No entanto, um posto no interior pode ter que atender entre dez e 15 municípios”, diz Edson Wagner Barroso, perito criminal no Distrito Federal e ex-coordenador de perícia forense na Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).
“O local fala. Deve ser preservado”
Outro motivo apontado para as falhas de perícia, a falta de isolamento do local do crime é uma mostra da ausência de um melhor acompanhamento da perícia pela polícia.
“O Estado tem que dar condições para que existam policiais suficientes para atender a demanda. O delegado deveria comparecer a todos os locais onde houve um homicídio, mas nem sempre é possível por conta do excesso de trabalho. No entanto, o primordial é preservar o local. Se o delegado chega a um lugar mexido, ele não tem como restabelecer o quadro anterior”, diz Carlos Eduardo Benito Jorge, presidente da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil.
“O local fala. Deve ser preservado, ou não entendemos sua história. E, na hora de ir uma equipe de perícia para ele, é obrigatório ir junto pelo menos um investigador. Já estive em local de homicídio em que vi um projétil incrustado na parede que o perito tinha deixado passar”, afirma Francisco Eustáquio Rabello, presidente da Adepol/MG e ex-corregedor de polícia.
Secretária Nacional de Segurança Pública, Regina Miki diz que foram investidos, entre julho de 2010 e setembro deste ano, R$ 30 milhões na compra de equipamentos e capacitação de profissionais. Mas que agora a Senasp se prepara para criar “os primeiros padrões” para os procedimentos em caso de homicídio:
“Os EUA acabaram de lançar uma cartilha com os procedimentos. Traduzimos e vamos adaptar para a nossa realidade, ouvindo peritos, delegados, especialistas. Em parceria com os representantes dos estados, a Senasp vai criar os primeiros padrões. Vamos induzir que os estados trabalhem com esses procedimentos, para que a gente tenha robustez nas provas”, diz Regina Miki, que acredita: “Com isso, a perícia será igual para todos”.
Piauí envia amostras de DNA para a Paraíba
Alta, de cabelos pretos e vestindo uma roupa elegante como as que vendia em uma loja de grife num shopping de Teresina, Fernanda Lages, de 19 anos, estudante de Direito, foi encontrada morta, às 7h do dia 25 de agosto, no prédio em construção da Procuradoria da República no Piauí.
Ela tinha um corte na cabeça e lesões no braço. Por falta de condições técnicas, os exames de DNA do material biológico encontrado nas unhas e nas roupas de Fernanda, além dos exames para saber se a jovem estava grávida e se tinha mantido relações sexuais antes de ser morta, não foram realizados pelos Institutos de Criminalística do Piauí e Médico Legal.
O secretário de Segurança, Raimundo Leite, decidiu enviar o material para o Instituto de Criminalística da Paraíba, e a Polícia Federal foi encarregada de encontrar manchas de sangue e outros indícios.
O Piauí tem 21 peritos para atender uma população de 3,1 milhões de habitantes. Em média, vítimas de homicídio e de acidentes de trânsito esperam até três horas pela chegada da perícia.
Pai de Fernanda, o o agropecuarista Paulo Lages Neves, de 46 anos, diz ter ficado surpreso com o fato de o Instituto de Criminalística não ter aparelhos para fazer exames de DNA, e estranhou o fato de o local do crime ter sido alterado antes da chegada dos peritos:
“Se as condições da perícia fossem mais adequadas e os exames pudessem ter sido feitos no Piauí, já poderíamos ter o crime solucionado e com os envolvidos presos. Minha vida já não é mais a mesma, o coração do pai é enterrado com o da filha”.
Por conta da falta de provas para solucionar a morte de Fernanda, 300 amigos e familiares fizeram uma manifestação pelas ruas de Teresina. Eles foram até o prédio da Procuradoria da República pedir mais rigor na apuração do crime. Coordenadora do Instituto de Criminalística, Maria dos Remédios Lima do Nascimento admite que o Estado está “muito aquém da necessidade da demanda”.
“Não dá para acompanhar o ritmo de violência, de modo algum. Não podemos fazer exames de DNA por falta de equipamentos e laboratórios. E o exame é imprescindível”, diz Maria, lembrando que um levantamento mostrou a necessidade de contratação de 88 peritos para descentralizar a perícia criminal de Teresina.
O Instituto funciona em um prédio deteriorado no centro de Teresina, com equipamentos embalados nos corredores por falta de espaço.
O governo do Piauí, com financiamento do governo federal, está construindo há seis anos um novo prédio. Levantamento feito para a 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Piauí pela Secretaria de Segurança apontou que 3,6 mil inquéritos de Teresina estão parados nas delegacias por falta de exames complementares e novas diligências. São processos relativos a homicídios, latrocínios, roubos e furtos.
(Reportagem publicada no jornal O Globo neste dia 25 de setembro de 2011).