Em menos de duas semanas, a Grande Vitória foi palco de duas chacinas, em que oito jovens foram assassinados. Mudou o governo, mudaram os comandantes das polícias, mudou o secretário da Segurança, mas a desculpa é sempre a mesma: os jovens foram assassinados porque estavam de uma forma ou outra ligados a drogas.
O Estado está sempre buscando justificava para suas falhas. No quesito segurança pública, o Espírito Santo se preocupa demais em justificar determinadas tragédias, em vez de evitá-las. A vítima, em algum momento das investigações policiais, passa a ser a culpada pelo crime.
Por mais inocentes sejam as criaturas, elas acabam sempre sendo alvo de comentários maldosos por parte de nossas autoridades para explicar porque foram mortas.
Lembro-me da estudante Isabela Cassani, 15 anos, estuprada, morta e jogada na baía de Vitória em 25 de outubro de 1999. O caso Isabela nos leva a outros, como o de Araceli Sanches Crespo e Ana Angélica Ferreira.
Até hoje, a Polícia Civil, o Ministério Público e o Justiça capixaba não foram capazes de descobrir quem matou as três jovens.
Isabela Cassani saiu de casa, em Jardim da Penha, numa noite de domingo, para ir à casa de uma amiga, que era missionária de uma igreja evangélica, no centro de Vitória.
Foi de ônibus e, assustada, saltou na Beira-Mar. Parou num posto de combustível, onde perguntou como faria para chegar ao Centro. Estava perdida. Câmeras do circuito interno do posto mostraram Isabela fazendo a pergunta a um balconista. A menina foi vista somente no dia seguinte, já com seu corpo boiando na maré, em Santo Antônio.
O que mais entristeceu foi a desculpa que o delegado Aéliston de Oliveira, que investigava o caso, chegou a apresentar à família de Isabela, dizendo que exame de conjunção carnal realizado pelo Departamento Médico Legal teria constatado que a menina, antes de ter sido estuprada, já não era “mais totalmente virgem”. Como se essa diferença biológica em seu corpo fosse contribuir para prender o assassino.
Os familiares de Araceli e Ana Angélica também foram vítimas de justificativas adotadas pela polícia capixaba.
Nos anos 90 havia um número exagerado de assassinatos no interior do Estado, onde as vítimas, em sua maioria, eram sindicalistas.
Recordo-me de uma reunião do Conselho Estadual de Segurança Pública, no edifício Fábio Ruschi, em que o então secretário de Estado da Justiça, o professor Renato Soares – ele era do PSB, assim como o nosso governador Renato Casagrande, que, na mesma ocasião, era secretário de Agricultura do governo Albuíno Azeredo – cobrava da cúpula da Polícia Civil a elucidação de assassinatos no campo.
Em determinado momento da tensa reunião (que eu, na função de editor de Polícia de A Tribuna, fui fazer a cobertura), o chefe de Polícia Civil da época virou para Renato Soares e tentou explicar o assassinato de um dos sindicalistas, com uma frase que mais parecia um escárnio: “Mas secretário, ele era sindicalista; brigava com todo mundo”.
Renato Soares, já nervoso, respondeu: “Meu caro delegado: estou pedindo para o senhor investigar o assassinato e colocar os assassinos na cadeia. O que a vítima fazia não é problema nosso. O problema da Polícia Civil são os assassinos”…
Como se observa, os anos se passaram, um dos Renatos – o Soares, foi para Alagoas, onde também foi secretário da Justiça – e, o outro, virou mais tarde vice-governador de Vitor Buaiz, secretário municipal na Serra, deputado federal, senador da República e agora é o nosso governador, mas a situação do Espírito Santo pelo menos na segurança pública é a mesma.
Agora a bola da vez são as drogas. Na quarta-feira (14/07), quatro amigos foram assassinados a tiros num ponto de vendas de drogas em José de Anchieta II, na Serra. Estavam desarmados. Foram, portanto, executados sumariamente.
Eram, segundo informam as polícias Civil e Militar, ligados a drogas e que poderiam estar em guerra com traficantes da região em disputa por pontos de bocas de fumo.
É certo afirmar que no Espírito Santo pelo menos 70% dos assassinatos, em que as vítimas sejam jovens ou não, são provocados em decorrência de algum tipo de atritos da vítima com traficantes.
Sabedora do fato, a polícia capixaba já deveria ter virado a página. Como? Estrangulando, com a presença de policiais militares, civis e até federais, as áreas dominadas pelo tráfico.
As três polícias têm mapas que mostram onde está cada ponto de vendas de drogas na Grande Vitória.
Possuem estudos que revelam quais os pontos são mais perigosos e onde existem as chamadas bombas relógios do tráfico, prontas para explodir.
Chega a ser impressionante o desabafo do tenente Cavatti, do Grupo de Apoio Operacional (GAO) do 6° Batalhão da PM (Serra), a respeito da chacina ocorrida em José de Anchieta:
“Estávamos em alerta quanto ao tráfico em José de Anchieta, mas não tínhamos a dimensão do estrago que estava prestes a acontecer. Cada lugar desses é uma bomba relógio na eminência de explodir. O tráfico é a mola que impulsiona os homicídios. A cada dia mais jovens são recrutados e tem se tornado difícil o enfrentamento”.
O temor do tenente Cavatti tem que ser respeitado. Afinal, parte de um oficial que está nas ruas e sente o clima pesado imposto pelos traficantes. Mas o temor não precisa ser seguido.
É preciso que, diante da constatação do tenente Cavatti, mais do que nunca sejam preparadas operações que possam sufocar o poder dos traficantes. É preciso invadir logo os principais pontos de vendas de drogas, com operações diárias.
No local onde os quatro jovens foram executados, as polícias Civil e Militar já deveriam ter instalado postos desde a noite da chacina.
Justificar a execução de quatro jovens e culpar o uso ou tráfico de drogas é a maneira que o Estado encontra para transferir para as famílias a responsabilidade pela segurança de seus filhos. A justificativa de uma crise ou convulsão social é apenas um componente que deve fazer parte de estudos sociais, para que providências imediatas ou futuras sejam tomadas pelos governantes.
Colocar mais policiais (sejam civis, militares ou federais) nas ruas e, sobretudo, em pontos de vendas de drogas, é uma responsabilidade do Estado. Se o efetivo é reduzido, seus comandantes têm que trabalhar até à exaustão para encontrar uma saída. Vale, neste momento, o esforço de todos.
Elaborar uma escala policial não é tarefa de todo difícil, mesmo com efetivo reduzido. Se oficiais e delegados encontrarem dificuldade, perguntem a seus policiais: alguns deles são consultores (de modo informal, é claro) de empresa privadas de segurança e sabem com competência, organização e dinamismo como fazer o milagre da multiplicação.